Crónica de Alexandre Honrado
A flor rara no mais alto cume
Os momentos mais delicadamente espirituais que me foram dados assistir ao longo da vida, e podem ter a certeza de que foram muitos e marcantes, incluem a rara sensibilidade de alguns ateus que, por incapazes de adorarem um Deus, ficaram na expectativa dos melhores encontros proporcionados por todos os deuses que, valha-nos quem puder, são tão variados, tão pródigos, tão completos e todavia tão frágeis e tão impotentes diante de uma civilização que nunca acertou o passo coletivo.
Amar o próximo, torná-lo próximo, repartir o que se tem e aceitar o que nos dão, parecem metas inalcançáveis, flor rara que nasce no mais alto cume de uma montanha que nos encontra sempre impreparados para a escalada.
Há religiões com livros e sem livros, eu até sou daqueles que procuram a resposta em todos os livros, por mais sofisticados, por mais eleitos, por mais comuns, desde que não sejam, isso é que não, banais ou impenetráveis. Em todos. Ou pelo menos em todos os que sejam dignos desse nome.
É curioso como ao escrever isto ponho os olhos numa revista que aprecio, The Happy Reader, o Leitor Feliz, que logo numa das primeiras páginas deste número, o 16, dedicado ao verão de 2021, adverte: A tecnologia do livro foi inventada para lidar com páginas que de outra forma seriam soltas e confusas.
Só há livros, portanto, para não andarmos a correr atrás das páginas esvoaçantes, como talvez só existam deuses para não esvoaçarmos sem sentido.
Deixem-me só ler um poema letra, de Caetano Veloso, ou pelo menos um pedacinho dele:
“Quem é ateu e viu milagres como eu
Sabe que os deuses sem Deus
Não cessam de brotar, nem cansam de esperar
E o coração que é soberano e que é senhor
Não cabe na escravidão, não cabe no seu não
Não cabe em si de tanto sim
É pura dança e sexo e glória, e paira para além da história”.
Pensem num momento espiritual que vos eleve.
E voltem sempre.
Alexandre Honrado
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